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“Que tal tomar um pouco de mel para aliviar essa tosse?” A sugestão tem cara de sabedoria popular, daquelas passadas de geração em geração para aliviar um dos sintomas clássicos do resfriado. Mas a realidade é que foi retirada — com certos ajustes de linguagem, obviamente — de um estudo recém-publicado no periódico científico BMJ Evidence Based-Medicine. Nele, pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, revisaram 14 pesquisas sobre o assunto e chegaram à conclusão de que o consumo do mel é mais efetivo do que estratégias usuais se o objetivo é abrandar as manifestações de uma infecção do trato respiratório superior mais leve, caso do resfriado.
Para o clínico geral Marcelo Sampaio, da BP — A Beneficência Portuguesa de São Paulo, a conduta é utilizada há um tempão porque sempre trouxe resultados favoráveis. “Esse trabalho vem validar um método antigo”, interpreta. A mesma linha de raciocínio é seguida pelo médico de família Rafael Ornelas, da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, na capital paulista. “Já existiam evidências de que o mel é uma das poucas substâncias com efeitos comprovados na melhora específica da tosse”, conta. “Esse novo estudo consolida os achados e indica que a estratégia não é só crença de vó. Está baseada em ciência”, completa.
A legitimação do poder do alimento frente a esse problema pode parecer banal para algumas pessoas, mas, no dia a dia da prática médica, tem bastante relevância. Afinal, pegar um resfriado é algo relativamente comum na vida de crianças, adultos e idosos, e, não raro, os episódios se repetem mais de uma vez ao ano. Tem mais: segundo a líder da investigação inglesa, o quadro é um dos principais motivos para a prescrição de antibióticos — remédios destinados a matar bactérias. A questão é que a maior parte das infecções do trato respiratório superior, resfriado entre elas, é provocada por vírus. Ou seja, alvo errado.
O tratamento com antibióticos não só é ineficiente nesses casos como contribui para o agravamento de uma situação cada vez mais preocupante nos hospitais, a resistência bacteriana. É que o uso descomedido e sem critérios desse tipo de medicamento acaba selecionando os micro-organismos mais fortes, que passam a se proliferar. Com o tempo, surgem bactérias aptas a provocar superinfecções — e, aí, os antibióticos nem funcionam mais. Segundo Sampaio, há estimativas de que ocorrem 23 mil mortes por ano no Brasil como consequência da prescrição inadequada dessa classe de drogas.
Na Inglaterra, um estudo mostrou que 48% dos médicos já recomendaram antibióticos para aliviar uma simples tosse. “Se uma análise assim for feita no mundo inteiro, incluindo o Brasil, vamos ver que isso é bem frequente”, aposta Sampaio. Tanto os profissionais de saúde como os pacientes precisam compreender que a tática está equivocada. Para falar a verdade, não existe nenhum remédio que vá tratar a causa do resfriado em si. “Mas há condutas que ajudam a amenizar os sintomas enquanto o corpo vai se curando”, resume Ornelas. É justamente aí que entra o mel — associado a outros comportamentos, como boa hidratação, dieta equilibrada e bastante repouso.
O produto derivado do trabalho das abelhas impressiona por sua composição. A nutricionista Gabriela Maia, do Rio de Janeiro, conta que ele exibe cerca de 180 tipos de compostos. “Há água, açúcares, aminoácidos, enzimas, minerais, vitaminas e inúmeros antioxidantes”, lista. Mas não adianta buscar uma fórmula exata: isso depende de vários fatores, como clima, local, espécie de abelha, tipos de flores que fornecem o néctar aos insetos, e por aí vai. O fato é que esse arranjo fino dá ao mel a habilidade de, entre outras coisas, desarmar a inflamação que culmina na tosse seca e irritativa característica dos resfriados. “E ele também parece combater o processo viral”, observa Sampaio.
Só é essencial permanecer ligado aos sintomas para distinguir uma infecção mais branda provocada por um vírus de algo mais tenso, como gripe, Covid-19 ou doenças bacterianas. Segundo Ornelas, o resfriado costuma se resolver em alguns dias e não ocasiona febre, falta de ar ou mal-estar intenso. Então, se notar a persistência ou o agravamento do problema, faz sentido procurar um médico ou serviço de saúde. Se há evidências de uma infecção por bactéria, por exemplo, aí, sim, será preciso lançar mão de um antibiótico.
Nas situações mais simples, porém, não tem por que complicar. O mel pode dar uma força. O clínico geral da BP só ressalta que o estudo inglês não determina um padrão de uso, já que se trata de uma revisão de vários experimentos com diversas metodologias. Em outras palavras, ainda não é possível estabelecer quantidade de consumo nem forma de apresentação (puro, misturado com leite ou chá…). “Vale o bom senso, e um profissional pode auxiliar nessa indicação”, aponta Sampaio. Para o médico, tomar uma colher de sobremesa a cada seis ou oito horas é um bom parâmetro a seguir.
A exceção fica para crianças com menos de 1 ano. “Isso por causa da possibilidade de o mel conter a toxina botulínica, o que pode ser perigoso numa fase em que o sistema imune ainda é imaturo”, explica a nutricionista Mariana Del Bosco, de São Paulo. “O botulismo é uma condição rara, porém grave. Melhor não arriscar”, concorda Ornelas. Na visão de Mariana, nem a partir dessa idade compensa apresentar o mel à molecada. “Sobretudo até os 2 anos, o hábito alimentar está em formação, e a ideia é evitar alimentos com paladar doce”, justifica. Nessa etapa da vida, o açúcar admitido é aquele encontrado naturalmente nas frutas e no leite.
Outro grupo que pede certa cautela com o mel é o de quem tem diabetes. “O mel é composto de açúcares simples, que chegam diretamente à corrente sanguínea, liberando energia imediata ao organismo”, esclarece a nutricionista Maria Angélica Fiut, presidente da Associação Brasileira de Fitoterapia (Abfit). Quem convive com a doença tem dificuldade de aproveitar o aporte instantâneo porque a insulina não atua direito — e é esse hormônio que auxilia na transformação da glicose em energia.
Embora se trate de um alimento natural que agrega um mix de substâncias potentes, a presença marcante de açúcares no mel é um ponto de atenção ressaltado pelos especialistas para todo mundo, sobretudo se a ideia é incluir o ingrediente na rotina — e não somente durante um resfriado. “O índice glicêmico do mel é bem parecido com o do açúcar branco”, diz a endocrinologista Paula Pires, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia — Regional São Paulo (Sbem-SP). Isso quer dizer que, ao ser consumido, ele também dispara a glicemia rapidamente, obrigando o pâncreas a produzir muita insulina. O abuso pode sobrecarregar esse sistema e abrir as portas ao diabetes.
Para amenizar esse impacto, a médica sugere combinar o mel (com comedimento) a alimentos ricos em proteínas, como um iogurte natural, ou abastecidos de fibras, a exemplo de frutas com casca. “Dessa maneira, há uma redução da carga glicêmica”, justifica Paula. Na prática, a associação não deixa o açúcar subir na circulação em um piscar de olhos, evitando os picos de glicose e insulina.
Mais um conselho é não pesar a mão ao trocar o açúcar branco pelo produto das abelhas. “O mel tem o poder adoçante um pouco menor. Então, ao incorporá-lo a bebidas, por exemplo, é preciso cautela para não usar uma dose extra”, recomenda Mariana. Cabe lembrar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que o açúcar deve representar, no máximo, 10% das calorias da dieta. “Mas, para a entidade, o ideal mesmo é baixar o limite para 5%”, informa a nutricionista. Para um adulto, isso dá mais ou menos 25 gramas por dia — entram aqui a versão tradicional (de mesa) e aquela adicionada pela indústria aos produtos, além do próprio mel. A doçura natural de leite, frutas e verduras não conta.
Se respeitar quantidades e adoçar estritamente o necessário, o mel é, para a nutricionista Maria Angélica, mais vantajoso do que o açúcar refinado. Ela lembra que, além de atuar em tosses e pigarros, o alimento possui atividade prebiótica. “Significa que estimula o crescimento e a atividade de bactérias benéficas em nosso intestino”, traduz. A colega Gabriela compartilha da mesma opinião, citando evidências de ganhos também ao fígado, ao coração, aos pulmões e à imunidade em geral.
Para além do nosso organismo, degustar o mel é uma maneira de proteger as produtoras desse tesouro líquido: as abelhas. “Optar por esse alimento promove todo um sistema associado à vegetação saudável”, defende o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, cofundador da Reenvolver, empresa que busca agregar valor a produtos da sociobiodiversidade. Ora, sem florestas em pé, os insetos perdem sua fonte de nutrição, isto é, as flores. O desmatamento é particularmente preocupante para as abelhas nativas brasileiras, que vivem dentro de nossas matas. O sistema de criação delas ainda está engatinhando, tornando-as mais ameaçadas do que a espécie Apis mellifera, que é resultado do cruzamento entre abelhas europeias e africanas e muito mais abundante em nosso país — daí por que seu mel é facilmente encontrado e financeiramente mais acessível. Contudo, apesar de mais resistentes, as Apis enfrentam seus dilemas. Elas padecem com o uso exagerado de agrotóxicos, já que as colmeias costumam ficar em áreas de agricultura.
Recentemente, a química Ana Paula Ferreira de Souza, doutoranda pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), analisou 40 amostras de mel de Apis — coletadas das prateleiras dos supermercados — e identificou resíduos de glifosato em 15 delas. Trata-se de um herbicida largamente utilizado no Brasil. “Só que existe um limite permitido para preservar a saúde do consumidor. E esse patamar foi ultrapassado em seis produtos”, revela Ana. Ainda de acordo com ela, o mel de laranjeira foi um dos mais afetados pela substância. Não surpreende Eugênio Basile, proprietário da loja Mbee, em São Paulo. “Não há laranjal que não seja manejado com pesticidas e agrotóxicos”, declara.
Para garantir mais segurança, a dica é conhecer o produtor e priorizar o mel das abelhas nativas, que, por enquanto, vem de paisagens menos modificadas. Segundo o biólogo Cristiano Menezes, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente, há mais ou menos 2 mil espécies delas em nosso território, sendo que de 300 a 350 não possuem ferrão. Nem todas produzem mel, mas, quando exercem essa atividade, o alimento é mais líquido e menos açucarado do que o fabricado pelas abelhas africanizadas. “Por ter mais água, ocorre um processo de fermentação natural dentro da colmeia, e micro-organismos benéficos transformam esse mel”, descreve Menezes.
“No meio do caminho, o produto adquire acidez e uma complexidade enorme”, relata Basile. “O mel é um dos alimentos que mais contam a história de uma região”, completa ele, lembrando que tudo interfere no resultado final, da composição do solo e da altitude à presença de sol e ação humana. Tamanha diversidade de sabores e aromas, nítida sobretudo nesses méis de abelhas nativas, caiu nas graças dos chefs. “A gastronomia colocou-os sob um novo holofote”, acredita o proprietário da Mbee.
A ciência também anda de olho na iguaria. “Um estudo australiano recém-publicado indica que o mel de abelhas sem ferrão carrega um açúcar interessante para a saúde”, noticia Menezes. O ingrediente se chama trealulose. “Ele promove a liberação de glicose na corrente sanguínea muito mais lentamente”, desvenda Gabriela. Além disso, a nutricionista observa que a substância não favorece cáries e exibe grande capacidade antioxidante.
Cabe frisar que o papel das abelhas — sejam Apis ou nativas — na saúde não fica restrito à produção de mel. Sua atuação mais ilustre é como agente polinizador. “Sem as abelhas, as plantas não produzem sementes nem dão frutos. Simplesmente deixam de cumprir a etapa reprodutiva e de sucessão”, ilustra Villas-Bôas. O biólogo da Embrapa nota que 75% dos cultivos agrícolas do mundo são beneficiados, de alguma maneira, pela polinização animal. “Isso representa um terço do volume de alimentos produzidos”, calcula Menezes. Defender as abelhas é, em última instância, sinônimo de salvaguardar a nossa espécie. O alerta foi dado lá atrás pelo físico alemão Albert Einstein (1879-1955). “Se as abelhas desaparecerem da face da Terra, a humanidade terá apenas mais quatro anos de existência”, anunciou o cientista. Pois é, dentro de uma colher de mel há muito, muito mais do que o alívio da tosse.
Por trás de uma colherada
Confira do que é composto o alimento produzido pela abelha Apis mellifera, a mais disseminada pelo território brasileiro:
75% de açúcares
Há glicose e frutose, tipos que caem rapidamente na corrente sanguínea. Por isso não dá para exagerar.
20% de água
Ela não deve exceder esse valor nem ficar abaixo de 15%. Já o mel de abelhas nativas é mais líquido.
5% de nutrientes
Há um combo formado por vitaminas, minerais, aminoácidos e inúmeros antioxidantes.
Linha de produção
O passo a passo mostra o trabalho meticuloso das abelhas para a produção desse alimento milenar, o mel. É o mais puro show da natureza:
1- A coleta
As abelhas operárias buscam néctar nas flores. Ele é estocado em um estômago especial, o papo de mel.
2- Barriga cheia
Satisfeito, o inseto retorna à colônia. No caminho, suas glândulas liberam enzimas que são incorporadas ao néctar.
3- Hora do passe
Na colônia, a solução açucarada (e cheia de água) é transferida para outras operárias. A abelha coletora volta ao campo.
4- Ajuste fino
Uma atrás da outra, as abelhas batem as asas, criando uma corrente de ar que remove o excesso de água do mel.
5- Lacração
Ao atingir o teor certo de água, o mel é guardado no favo. Cada célula é fechada com cera, barrando o contato com o ar.
6- Está pronto
No momento certo, o apicultor (com as roupas de proteção) retira os favos da colmeia para ter acesso ao mel.
7- Dose reserva
O apicultor precisa deixar um pouco do mel na colmeia. As abelhas recorrem a ele em tempos de flores escassas.
Cozinha com toque de doçura
Existem diversos modos de utilizar o mel e apreciar novos sabores. A despeito das escolhas, o crucial é se guiar pela moderação:
Café da manhã
+ Por cima de frutas
+ Com iogurte e aveia
+ No café ou no leite
+ No recheio da tapioca
Almoço e jantar
+ No molho de salada
+ Com carnes
+ Nos vegetais assados
+ Ao grelhar legumes
Sobremesas e snacks
+ Em bolos e pudins
+ Na pipoca
+ No flã de iogurte
+ Em vitaminas
Um vasto universo
Outros produtos fazem parte do mundo das abelhas. Além do néctar, elas comem o pólen das flores, item turbinado de proteínas. Já a geleia real é o alimento que as operárias ofertam à abelha rainha. “Esse produto é muito mais rico que o mel”, define Eugênio Basile, proprietário da Mbee, em São Paulo.
Para ter ideia, não há diferenças genéticas entre as operárias e a rainha. No entanto, por causa da dieta à base de geleia real, a soberana supera em cinco vezes o tamanho de suas súditas. Sem falar que pode viver até cinco anos — as abelham comuns alcançam uns 45 dias. O própolis, por sua vez, tem a função de barreira, blindando a colmeia. “Não à toa podemos utilizá-lo como bactericida”, nota Basile.
O sonho da colmeia própria
Uma maneira de resguardar as abelhas nativas sem ferrão é proporcionar a elas uma morada — e pode ser no seu quintal ou na sua varanda. Não precisa ter medo: são inofensivas. “O manejo é simples, principalmente ao optar por espécies acostumadas com o ambiente urbano, como a jataí”, ensina o biólogo Cristiano Menezes.
Os insetos podem ser adquiridos com criadores ou atraídos com uma isca — basta colocar extrato de própolis da abelha sem ferrão dentro de uma caixinha. Menezes lembra que a Embrapa Meio Ambiente lançou um curso online de três horas sobre a atividade, denominada meliponicultura. “Ele é gratuito e direcionado a iniciantes”, avisa. “Até crianças podem colher o mel”, destaca.
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